terça-feira, 29 de abril de 2014

aos povos dos livros


para a Ana Nére
há uma hierarquia na ordem das coisas

Llé com Llé, Kré com Kré, etc...

nossos únicos problemas são os Llé,
desde que, é evidente
entremos de acordo nos Kré

o que só parece possível
no entanto
em outro lugar, dimensão

os que Krémos somos os que Llémos
e
o(s) que Llémos somos o(s) que Krémos

somos os povos dos Livros que lemos:
se livres os lemos, contu(n)do(?),
lavrar-nos-emos nos Livros
livrar-nos-emos dos Livros

sejamos vivos e livres,
leiamos os livros dos outros:
seremos outros nós mesmos!

meu ódio


meu ódio é um museu de cera
faces em poses retas
lentamente se derretem

visitantes se desfazem
espectros de outras faces
que um dia lá estiveram

atônito eu me procuro entre todos
um espelho esquecido crepitando

um dia só restarão
montículos deformados

e o incêndio que se seguirá
totalmente desprovido de sentido

sepultará os vestígios
desta estranha vilania:
odiar em fogo brando

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

nunca!


nem que a vaca tussa
nem que o papa peça
nem que a pipa passe
nem que o passo apresse

nem que o papo possa
nem que a popa desça
nem que o povo acesse
nem que o novo cresça

nem que o Zé mereça
nem que alguém processe

nem que um bom começo
sem nenhum tropeço
faça eu ver do avesso

isso eu não confesso!

sexta-feira, 30 de março de 2012

o prisioneiro do sonho


aquele bardo
amordaçado
encarcerado

emparedado
desde o dia
em que nasceste

será que é este
que te assalta
à madrugada,

encapuzado
e apavorante

com esse verso
à queima-roupa

genuíno pé-quebrado?

quinta-feira, 22 de março de 2012

o mecânico e o sapateiro


pro Crispim

na primeira esbarrada, eu encrespei:
- minha mãe não é mascate!

e ele, imortal:
- sua casa deve ter um quintal bem grande, né?
- ué! porquê?
- você deve ter deixado a educação lá no fundo...

a encarada me conquistou

seu nome?
nem tinha idéia
o meu, ele sabia
(ele sempre foi mais sábio,
eu era só mais sabido...)

nossa primeira parceria foi:
Marreco, Antero e Amauri
Tuti, Gonçalves e Eca
Tim, Tidão, Tonho Rosa, Luizinho Rosa e Canhotinho

ele me mostrou o Canhotinho
(um velhote acabado)
e me apresentou pra ele

compartilhamos Clarice...

eu, vago e superficial
ele, cerimonial
eu alegre, ele sombrio
eu musicava, ele pintava
(a poesia nos unia)

eu me iludia comigo mesmo
ele não acreditava em si

crescemos, mudamos:

eu cowboy, ele chinês
eu na droga, ele na yoga
eu no chute, ele aikidô
eu surtando, ele estudando
eu bebendo, ele cozinhando

chegou a distância...

um dia: Camila!
clareando a casa
trazendo Felipes e Brunos

de cá, Valéria, Flora, Lara e Lia...

envelhecemos

eu perdi os cabelos, ele não...

mas tenho dois quadros na parede
(um é roubado)
e milhares na memória

quando ele foi pintar na Itália eu escrevi um artigo no jornal

o mais legal é que a história não acaba...


domingo, 13 de novembro de 2011

valéria


na cama, a leoa
não o centro, mas o avesso
colore o mundo em torno a si

desatenta acende as luzes
e por dentro grave
atrasando a gravidade
centraliza os fatos:

tudo gira ao seu redor

de pé, a leoa
não o fim: começo
lentamente recobre
de si o que toca

desatenta, no entanto,
encabulada,
sai distribuindo
peso, massa, movimento

em volta dela, eu:
satélite!

domingo, 6 de fevereiro de 2011

um volmar e quatro doces

nem deu pra adoçar a amargura:
por mais que melasse o tempo
acabou azedando o caldo

nem deu pra acoitar a rapadura
por trás de um mosquito imenso
vindo de um tempo assombrado

fica o pigarro na garganta

dos doces que a memória canta

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

quereres


querer, eu quero
a casa limpa
a alma pura
o sol na cara

mas desespero no desterro,
na lonjura em que me encontro

tão distante de mim mesmo
que alma limpa e cara pura
são somente uma miragem

e o sol filtrado
que aparece ante meus olhos
nem me aquece, ou ilumina

no entanto,
atento à dança acentuada
entre a vontade
e o desejo,
ao longe vejo
a vaidade evanescendo

e me aquieto, acocorado
armando forças
proutro salto:

o sol tá lá!

terça-feira, 5 de outubro de 2010

tolerâncias


a intolerância é um atoleiro
que entope o entendimento
e atapeta o sentimento

atropelando a humanidade

quinta-feira, 22 de julho de 2010

intolerâncias


não suporto quem se leva
muito a sério

achar que sabemos tudo
é um saco

ser humano é viver
um mistério

e às vezes cair
num buraco

gente que acha que é Deus

me dá no saco

quem fala em nome de Deus, então
me assusta

critério é que nem preparo:
nem todos tem

cautela e humildade, é claro
só fazem bem


terça-feira, 18 de maio de 2010

desarmadilha


atenta à teia
enquanto tece
a aranha trama
a captura

tecida em seda
acetinada
a teia brilha
à luz da lua

vibrando as asas,
distraída,
a mariposa

nem toca a teia
enquanto ao léu
ali flutua

sexta-feira, 30 de abril de 2010

onírica


aquela rede
tecida em sonhos
sedosa rede

que a sós desfia
quando anoitece
os nós que somos

e recompõe
um só de nós
quando amanhece

confunde e ilude
quando acontece
que nosso medo

de sermos sós
impede vermos
que embora sós

somos a voz
que tece as redes
em que expressamos

os nossos sonhos
a nossa sede
de sermos nós

quinta-feira, 15 de abril de 2010

história de passarinho


era uma vez uma passarinha
que cantava um lindo canto sozinha
pousou perto dela um passarinho
que cantava um triste canto sozinho


ele aqui cantava em dó
ela lá cantava em si

sexta-feira, 9 de abril de 2010

miasma


a saudade saída de cada canto
conta o tanto que tentei
te ter em mim

enfim,
no
f
i
m

fascínio é o olhar fantasma,
gata asmática

(é prático ser platônico)

sábado, 27 de março de 2010

perpendicularidade

para as gramáticas de Sandro Brincher
o homem é vertical
a mulher horizontal

e não há mal em tal
perpendicularidade

mas a dádiva de em dois
determinarmos um plano

revolução

(poesia em dois tempos e dois sexos)
I
presente do passado tão presente no indicativo das (indicações, indistintas, instituições) indistuições

versão masculina

quem já foi fecundado, é hora de fecundar
é este o significado da revolução feminina
nós as fecundamos na carne
deixemo-las fecundar-nos o espírito
nós as fecundamos na razão
deixemo-las fecundar-nos o coração

versão feminina

quem já fecundou, é hora de ser fecundado
é este o significado da revolução feminina
eles nos fecundaram na carne
fecundemo-lhes o espírito
eles nos fecundaram na razão
fecundemo-lhes o coração

II
futuro do (presente, pretérito, pretendido) preténdido do presentaço que ganharemos se sacarmos

versão feminina

quem já foi fecundado, é hora de fecundar
é este o significado da revolução masculina
nós os fecundamos no espírito
deixemo-los fecundar-nos a carne
nós os fecundamos no coração
deixemo-los fecundar-nos a razão

versão masculina

quem já fecundou, é hora de ser fecundado
é este o significado da revolução masculina
elas nos fecundaram no espírito
fecundemo-lhes a carne
elas nos fecundaram no coração
fecundemo-lhes a razão

sexta-feira, 19 de março de 2010

autópsia/autoespia


cortei meu peito
a machado
e inventariei:

aqui no canto frases cortantes
quase com tanto fio quanto fel

sobre tudo
uma melodia

de dia claro vinho e mel

a seguir:
varios anéis e um só dedo
encobrindo uma única aliança
e todos os dedos
(inclusive aquele)

um farto estoque de choros
um claro toque de amigos
um coro berrando: brocha
um outro gritando: bicha
e uma bela resposta

no centro
todas as fotografias do meu amor
e alguns ódios meio obscuros

por último, dançando uma lenta valsa,
um medo apavorado e uma temerária coragem

quarta-feira, 10 de março de 2010

domingo

do livro Feitiços diversos
a cidade e a impaciência da cidade
um lento modorrar de violência
preto o asfalto e o blusão
e preta a moto
mono mono mono
monóxido de carbono
e todos os seus cogumelos são atômicos

sexta-feira, 5 de março de 2010

amizade

pra Gina
a amizade é uma janela especial
que se abre pras paisagens de dentro

domingo, 28 de fevereiro de 2010

dança


em torno
e de novo
de volta
eu danço

não corro
não caio
não penso
ou canso

toureiro,
rodeio
e ataco

e o touro,
feliz,
escapa

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

trialética


um terço
do que fazemos
é uma dança

outro terço
é sólido
como pedra

do outro
apenas podemos
sondar o mistério

um terço
do que podemos
é vontade

outro terço,
contentes,
deixamos pra lá

o último
infelizmente
é miragem

um terço
do que queremos
é desejo

outro terço
surpreso e careta
é sossego

o terceiro
por fim
evaporou-se depressa

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

fundamentos


é fundamental
fundamentar
na mente profunda
uma sonda mental

que se meta na mente,
afunde a mentira
e funde a imaginação

imagem-noção,
imagem
acionando
imagem

“imagem nação”
nossa nação à nossa imagem?
nossa nação é nossa imagem?

imagine!

nessa noção,
nossa nação
é nossa mente

então,

imagine a ação
da mente profunda
no fundo da mente:

não se mente
no fundo da mente,
a mente profunda
já é verdadeira

não se aumenta
o fundo da mente,
ele é a verdadeira
lente de aumento

o que haverá por lá?
sei lá!

a gente apenas conhecerá:
o negócio é ir até lá...

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

imodéstia


pra que modéstia?

façamos desta imodéstia,
que afinal é o que nos resta,
o cimo desta loucura
que recusa qualquer cura
pro rumo em que se aventura

pois resta tão pouco louco por vocação
e a pasteurização matou os germes

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

luta armada

do livro Feitiços Diversos
no velho mar de merda
a Morte mete Marte

sábado, 9 de janeiro de 2010

plataforma


quem civiliza
desmilitariza?

não é desmilitarizar
é desarmar:
desistir do poder de só ter

pra buscar ser o ser que serei, que sereis, que seremos,
sereias e reis, e princesas e seres reais
(inevitavelmente)

e aí, nada pod'rá te impedir de pedir:
teu poder de pedir é o poder de impedir
que pedir se resuma a uma súplica, só

pra dizer, sem perder o poder de pedir e dizer:

diz, alma desarmada
nada poderá te deter
de ter tudo
tudinho mesmo
nada tendo, no entanto

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

apelo fraterno


nós somos nós
mas nossa voz
ouçai-a vós
que sois tão sós

sereis então
os novos nós
ovos de nós
aves pra nós

trazei convosco
pais e avós
filhos e nós

que um outro nós
florescerá
com vossa voz

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

observador II


o papel do observador
é mister que se anuncie

pra que nele se confie
precisa de tal rigor

que nos permita entendê-lo
pra podermos praticá-lo

pois no plano do dia a dia
outros pulsos se iniciam

entre o intervalo do almoço
e a busca por outros ossos

que plana entre nós, visível
das alturas do invisível

e se não nos entendermos
com eles e entre nós

nossas redes, nossos nós,

mas iremos todos sós

domingo, 27 de dezembro de 2009

retidão solar

pra Valéria

minha amada
retilínea

nada de viés
vens vindo

vivendo eu
ou vendo eu

em mim

filha do sol
em mim,
filho da lua
atua
tua pilha solar

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

fuga ao amanhecer, com sereia

pra Valéria

a noite, escandida no ar
sussurrante sinal
dos perigos de ser
silencioso animal

mas, fugida do mar
me aparece você
escondido no olhar
tanto amanhecer

à noite, escondida do mar
sensação terminal
me aparece você

escandindo no olhar
tentação de coral
todo o amanhecer

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

a nossa Terra


de tardezinha,
índio vem fumar na rêde

e descuidado
se recosta a imaginar

e é no colo
do silêncio e da incerteza

que descobre da beleza
que é viver no seu lugar

a nossa Terra,
tão bonita e maltratada

mãe, filha, amante,
nos convida a fecundar

só precisamos
muita generosidade

caridade, amor, verdade
e a nossa mão pra trabalhar

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

poemeto


prometo
um soneto
e padeço
com medo

projeto
um quarteto
e cometo
um começo

tremendo
ofereço
outro verso

e acendo
um segredo
disperso

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

valsa da comida

Recitar mastigando as palavras, em 2/3.


a gente...

dilacera a comida com os dentes da frente, com a ponta da língua sentindo o sabor, e no centro a textura, e tritura, os carnívoros nos comprimindo a comida pelo céu da boca, nos lados da língua sentindo o sabor (arrepio?), e no centro a textura, e esmaga, molares (e siso talvez) perigando a garganta e engole, a saliva e a comida descendo rolando esôfago abaixo, chegando molhada e o suco do estômago (gástrico) ácido ataca e dissolve as gorduras e chega!

e vamos a outro bocado:

a gente...

sábado, 28 de novembro de 2009

entre gregos e humanos


em parte, a gente é Marte:
a morte, alarde forte
invade e morde,
parte, corta, mata

por sorte
em parte a gente é arte,
esperta parte

e vê nas coisas Vênus, de verdade

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

mente


minha mente
meu ente:
minha lente
de aumento

se mente:
se aumenta e
não entendo

se tende:
então pende e
não entendo

se sente:
se estende e
não entendo

se entendo, no entanto
e distendo, me sento
não ajo, não extendo:
não adianta o entendido

se entendo, porém,
mantendo-me agindo
semeio sementes
que aumentam os entes

domingo, 15 de novembro de 2009

pastoral III


todos os lírios olhavam, azuis
o céu, que o olhar é sempre azul

desmanchavas-te fluida
e chovias pelo campo

de algodão subias e eu, aqui
calado, triste, te soprei

subiste mais então
choveste mais fortemente ainda

pastoral II


a noite cinza devolveu teu rosto
decomposto nas estrelas

eu te sabia, como sei a idade
do tempo, e vinhas de antes

ainda soprava o vento sul
e o mar revolto chorava tua perda

como não chorar-te eu
que te pedira e tinha teu perfume?

pastoral


madura, sim, como te embalava
o vento, espiga adocicada

corolas e paz te dedicava
a primavera, como se ela fosses

eu sempre te amei percorrendo teu
corpo frondoso, a seiva tua

numa noite cinza enverdeceste
o pasto cinza, e floristes

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

sólido som


da massa de som
do muro de som
o som do coração
peito a peito

e um mar
molhando meus olhos
devagarinho
fugitivo


me ensina de mim assim:
sendo

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

meus quinze anos


cida querida
a vida esteve
vezes sem conta
toda na conta
do teu olhar

e lar
era ter alguém
que bem ou mal
sem te dizer
soubesse
que todos podemos
reformar o mundo

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

mais cedo que magrelo

pro Gustim
irmão

irmos juntos é fatal
tal nos amamos

que a vida
ultrapassa o passado

até o ponto
em que o encontro
é essencial
e as palavras
mero enfeite

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

homolux


somos feitos de metal
de metal o somos
e ainda de espuma clara
e luz cativa

não sabemos onde ir
nem se vamos
passos graves e solenes
ou voando

e quando nos para o sol
não o vemos
pois, cegos e translúcidos
nos lê

mas se funde-se o metal
em luz e espuma
somos nós e somos
mais que nós

terça-feira, 22 de setembro de 2009

soneto louco


fugindo do eu profundo
rompendo com nossa essência
não tomamos consciência
das cadeias desse mundo


meu canto, inconstante vento
tropel alado e candura
desarticula o momento,
na cadência da loucura

(um nome até cabalístico...
normal? conceito estatístico)
se nadar na insanidade

for necessário em meu canto
em busca da liberdade
serei um louco, portanto

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

o silêncio da amiga


amo, amiga, o teu silêncio
mesmo recortado de palavras

alfinetes preciosos
que só ornam
leves notas
teu silêncio

extravasas pelos olhos
teus cabelos escorrendo eternidade
tuas formas que reluzem paz

e teu nome iluminado

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

o sono da amiga


dorme amiga, e sonha
que te sonho eu


que me adianta despertar teu calmo sol
no claro imenso de tua cama líquida?

teus seios de cristal intumescidos?
chove lá fora e aqui dentro sonhas

ah! delgada flor absoluta
fugiste cedo pra teu mundo só
e me deixaste velando o vento

etéreo grão de pólen, definitiva
espargiste o abandono ao teu redor
com teus olhos mansos e louros

terça-feira, 25 de agosto de 2009

o sim da amiga


porque foste aqui a senhora
e uma flor solitária
porque o disseste - e não?
e majestosamente


porque calaste meu peito
com a mordaça de teu olhar

e porque de teus cabelos e espáduas
de tua clara nuca feminil
e de teu colo, mãos aflitas
deixaste subir a voz silenciosa
e não mentiste - sobretudo
assim ouvi, e a branca noite te envolveu

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

a chegada da amiga


de rosa em rosa, préstita
no peito se avizinha a prece - vem!
com teus passos argentinos, voz
de meus anseios, desce aqui

(que plúmbeas rosas te
acolheram, que inóspito o ar!)

mas teu ventre túrgido
e os leves olhos de açucena

(quanto trazes de dor em teu peito? muito
do que já fui e sou te devo e quero)

as fortes coxas murmurando teu caminho
a testa forte de sol crestada
e os dentes...

domingo, 16 de agosto de 2009

decoração de interiores


teremos armários abertos
e armários fechados,
em casa

armários abertos
permitem-nos ver
ou tocar nossas coisas

fechados impedem-nos ver
ou tocar as tais coisas
(destas perdemos controle!)


querendo-se alcance, ou controle
temos que tê-las em mente
ou então no ambiente: à vista!


querendo evitar que as controlem:
pô-mo-las fora de alcance

sábado, 8 de agosto de 2009

decoração de exteriores


no despiste é que encontro resposta,
uma técnica pra preservar-me:

preservo meus rastros no meio ambiente
imprimindo até mesmo as burrices dos rastros

já que não dá pra apagar no passado
é possível driblá-las adiante

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

os netos de drácula


dentre os dentes enterrados
(coitados)
existem os de leite

além destes
que nos mordem à noite

morte
melhor te ilhar
individualizar
noivar
e ficar te namorando

quarta-feira, 29 de julho de 2009

perdida infância


de dentro
e por trás
do tempo

roendo
a tenda
do real

solenemente venho anunciar
a triste ausência da magia

quinta-feira, 23 de julho de 2009

transcendência


a voz do coração
com a razão desbotada
bota toda palavra
pra lá do teto

a voz da razão
acorda o coração
e o amordaça

(ou não)

segunda-feira, 20 de julho de 2009

autobiografia


já fui sósia, um dia,
de uma ventania
dispersado, embora,
pela aurora

sem fugir da noite
desdenhei do açoite
e morri, no fundo,
vagabundo

quando enfim sorri
muito envelheci
nessa calma esteta
de poeta

sexta-feira, 17 de julho de 2009

poesia clássica


o esqueleto das ninfas
flutua pela floresta
em ritmo, cor e som

o poeta distraído,
assaltado pelo avesso,
oferece uma estrutura

o leitor, extasiado
acreditando nos versos
supõe que é inspiração

e as pobres descarnadas
ficam presas ao que resta

de sua antiga figura

terça-feira, 14 de julho de 2009

poesia desbregada


para ser um bom poeta
é preciso ser cruel
trucidando calmamente
quaisquer boas intenções,

depurando de seus versos
todo vestígio meloso,
como um fauno classicista,
frio, apolíneo e feroz

que, ao assassinar as ninfas
mastigando-lhes o véu
até que apenas lhes reste

o diáfano esqueleto,
na exata sequência de erros,
vomita o poema cru

segunda-feira, 6 de julho de 2009

noite


um halo de aleluias
recortando as luzes

grilos picotando a voz dos cães
corujas esperando
aranhas espiando

nós, humanos,
não amamos o momento
que amedronta-nos co'a morte

pois o medo
essa mantilha mentirosa
manieta a nossa mente
e nos impede de notar

que a medida do momento
(uma menina melindrosa)
é nossa mente maneirosa

amalgamada à madrugada
da maneira enamorada
dos amantes saciados

quarta-feira, 1 de julho de 2009

alma II


alma querida, fêmea derradeira
que me tentaste o coração errante
deixei-te atrás e voltas sobranceira
e, caso eu deixe, voltarás adiante

se me persegues desde a vida inteira,
tua voz suave a me soar marcante
teu jeito doce teu andar galante
na verde relva tua verde maneira,

teu claro rosto por detras do muro
que a contragosto ergui, guia seguro
a minha mão, meu corpo e meu destino

e confiante no meu desatino,
rendo-me a ti, entrego-te no escuro

eu solidão, eu homem, eu menino

terça-feira, 30 de junho de 2009

carpintaria

curto

encurtar o verso
encontrar o verbo

certo

apararacertarapertaraclarar
acertarapertaraclararaparar
apertaraclararapararacertar
aclararapararacertarapertar
aclararapertaracertaraparar
apararaclararapertaracertar
acertarapararaclararapertar
apertaracertarapararaclarar

ou

encobrir

quinta-feira, 25 de junho de 2009

amor líquido

pra Valéria
ela ri
ela chora
e o ari
finalmente evapora

terça-feira, 23 de junho de 2009

notúrnia


a noite ciciava um sim
ao ouvido da lua

e todas as outras flores
fingiram ser a única

segunda-feira, 22 de junho de 2009

sinestesia


a clara concretude silenciosa
a silenciosa clareza concreta
e o concreto silêncio, claro!

o silêncio concreto aclara
e, claro silêncio, concretiza
a concreta clareza? Silêncio...

sábado, 20 de junho de 2009

soneto do amor dormindo


não o desperte agora, amada minha
meu vulto breve dorme a te sonhar
de palmo em palmo mal adivinhado
dorme em teu peito branco de alecrim

dorme em teus olhos nus e te desnuda
dorme em tuas mãos festivas e solenes
dorme em teus pés e dorme em teu umbigo
e dorme em teus pequenos gestos lentos

pois que em ti durmam ossos e cabelos
que te desmanches, pétalas ao ar
ou que suceda em ti meu despertar

que imagens-nuvem tragam meus apelos
ou te observe o sol que se avizinha

não o desperte agora, amada minha

segunda-feira, 15 de junho de 2009

térmica


noto em tempo:

a invenção do vento
é o lento movimento

intenso e atento

do urubu subindo
ao firmamento

terça-feira, 9 de junho de 2009

rebento

pra Flora
filhinha

viestes trazendo
todos os meus ancestrais
minha perdida expressão

mandalas e pais
e mães
e filhos

dores e amor
(oculto)

medo e solidão
criativa solidão

solidão a dois
deus (compartilhada a solidão)

solidez, e depois
te gerar, digerir
te perder, me perder

pra poder nos achar

quinta-feira, 4 de junho de 2009

desistência

quase toda aspiração é piração
e assim
desisto e me despeço

e dispo essa veste
deste estranho ser
que me tornei

sério e engravatado
engavetado
entre o ter e o poder

e visto-me de mim,
visto que de mim
posso esperar

ter o poder
de ser algum
eu mesmo

sexta-feira, 29 de maio de 2009

pastoral trágica

do livro Feitiços Diversos
a lua
minuciosamente assassinada
a golpes de pirilampo

sob os olhos famintos
de uma platéia de grilos
que cricrila satisfeita

impacto


na sala o gato
num salto exato
exalta o ato

a precisa solidão do fato
incônscio
intacto

quarta-feira, 27 de maio de 2009

quinta dos tamborins


vez em quando nhambu pia
minha tia então resmunga
e uma manga distraída
esquecida de si mesma
se despenca da jaqueira

sábado, 23 de maio de 2009

religião


na escuridão da cidade
na escura idade da pedra
em que vivemos

inseguros jovens
imaturos velhos
com tamanho medo

busquemos a caridade
que nos cure esta cidade
estas idades em conflito

para os aflitos, amor
pros inimigos, perdão

e pros amigos, respeito

samba memorável (um passeio pela casa)

dedicado a uma canelada na quina da mesa
memorabilia
a mobília da memória
a memória da mobília
memoriza habilidades
habilis memoris

habilita a memória
a morar melhor
na memória e na mobília

quarta-feira, 20 de maio de 2009

amor e silêncio

pra Valéria
as palavras
gaivotas

voltam todas
pro mar

mas amar
sem palavras

não tem volta

segunda-feira, 18 de maio de 2009

jardim

a Cecília Meirelles
conheço a floração da primavera
e a cada pétala que olhar serei, distante
de cada eterno coração (e asa), a hera
seu sangue verde, seu secreto amante


o claro coração das flores erra
e na vereda por que erra, brevemente
espia o etéreo beija flor da serra

que vem e ama e beija e vai rapidamente

sábado, 16 de maio de 2009

'round about midnight


a música é egoísta
a arte má conselheira
a vida sim, ilumina a poesia

arte sem vida é vício
e vício versa?
já vi se versa, não versa

a arte é uma filha ingrata
um filho sim, é uma obra
a poesia não cobra

só arte embriaga e mata

terça-feira, 12 de maio de 2009

antigo amor

pra Valéria
tem cinco mil anos que eu te conheço
(e começo a conhecer-te agora)
e desconheço nexo
entre eu e mim
que desprecise de você
pra se explicar


você não estava em mim, mas no ar
foi só abrir o peito

sábado, 9 de maio de 2009

se ocidente, rapaz


suponha um sol se pondo
ponha em si poesia
e morra lentamente

pierrot perdido


enquanto descrevo a estrada
destravo um frevo
cravado na garganta

quarta-feira, 6 de maio de 2009

porque ver o mundo?


muito mundo é todo visto
de um só ponto de vista


tonto, insista!
o mundo, muito visto
ensina isto:
todo mundo vê sempre
tudo muito diferente

sexta-feira, 1 de maio de 2009

o medo


o medo é triste
rijo e lento
como a solidão

é sólido
como a dor
líquido
como o suor

o medo pede dez dedos
entrelaçados

o medo asfixia

marcas?
o medo as fixa
em cruz

o medo é cru e vivo
um polvo pegajoso

o medo
perde o anel e o dedo

quinta-feira, 30 de abril de 2009

o outro modo do medo


meu dedo
em meio ao medo
mede um dado modo
de cedo ceder à dor

dado que
o dedo da dor
é feio

mas no meio
qual na merda

medra a vida

terça-feira, 28 de abril de 2009

dor


a solidão da dor
dentro da gente
dura o tempo
de gentilmente
encará-la de frente
mordê-la
mastigá-la


e digerir devagarinho

segunda-feira, 27 de abril de 2009

pastor distraído

a Cecília Meirelles
apascentando à distância
plácido passante quase em paz
pálidos passos nos passeios
pastoreio as casas, as montanhas e os meios

sexta-feira, 24 de abril de 2009

desculpe, Fernando


ser poeta é mais ou menos um fardo:
por um lado, ardo
por outro, durmo
às vezes me aprumo

às vezes naufrago

terça-feira, 21 de abril de 2009

cotidiano


cabelos caídos na pia
misérias do dia a dia

como conciliar
o cotidiano cântico
e a voz da eternidade?
viver é pararromântico

perturba a nossa vontade

anjo daqui debaixo


desse etéreo véu de Maya
noiva inconvene, nuvem,
de novo é inevitável:
devo me desnudar


as cicatrizes das asas
encriptando minh'alma
tensos pontos de fuga
de outras perspectivas
ontem me carregavam:

hoje carrego só,
e só.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

quintanar metafísico (e vice versa)


eu vidamorte, que processo venho
apresentar-me, presa desse engenho
que é roda e vida, e vida e roda, e arte,
que me confunde e espalha em toda parte.


eu mentecorpo que pensando vivo
eu mão e pé e peito e voz e livro
eu inmortal, concretabstraindo
anseio em ser o círculo, saindo!

mas devo apenas me deixar na hora
tão sem temor nem pressa desse Outrora,
que lá do Fim do Mundo se avizinha,

envelhecendo verdadeiro e manso,
trago comigo o riso da criança
e o cochilar desperto da avozinha.



faca, lua e solidão

a João Cabral de Melo Neto
escrever é escravidão
que se vive estranhamente
embrenhando-se na mente
da palavra imensidão

escravo da vida só
vivendo o gosto do pó
escrevo daqui do fundo
do poço interno, profundo

em que jazo, impressentido
na solidão. E destemido
persigo a fera que tocaia

por trás da lua sangrenta
por cima da terra nua
com a sua palavra: faca!

alma


é também uma tristeza de outra ordem
da profunda solidão que nos envolve,
com seus dentes quebrados que inda mordem,
e uma sístole ou diástole resolve.

também é a amplidão que busco insone
e ataco descabido, tenso e cego
com o pânico crescendo à minha espreita.

finalmente é quando, como à noite
assustado e solitário me dissolvo
lentamente em direção à madrugada.

nós humanos transcendemos o momento
a clareza requerida do momento
mas também nos dissolvemos nos sentidos
dessa selva tão humana dos sentidos.
 
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